A gigante do mobiliário doméstico Ikea colocou recentemente outdoors em Portugal anunciando uma estante automontável, com uma piscadela para a convulsão política do país. “Um bom lugar para guardar livros. Ou esconder 75.800 euros”, afirmou.
Essa é a quantia em dinheiro, equivalente a US$ 82 mil, que a polícia encontrou enfiada em envelopes nas estantes quando revistou o gabinete do chefe de gabinete do primeiro-ministro no ano passado, durante uma investigação de corrupção.
A descoberta desencadeou um escândalo que derrubou o governo e levou a eleições gerais antecipadas no domingo.
A corrupção é uma questão de destaque nas eleições, depois dos casos “causarem muita consternação pública”, disse Paula Espírito Santo, professora associada do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.
A indignação poderá dar ainda mais impulso a uma tendência para a direita na política europeia, à medida que um partido populista de direita radical beneficia do desencanto com os principais partidos políticos. Tendências semelhantes atingiram as vizinhas Espanha e França.
O Partido Socialista de centro-esquerda de Portugal e o Partido Social Democrata de centro-direita alternaram-se no poder durante décadas. Espera-se que desta vez obtenham a maior parte dos 10,8 milhões de votos potenciais.
Mas ambos estão contaminados por acusações de corrupção e clientelismo.
A eleição ocorre porque o líder socialista António Costa renunciou após oito anos como primeiro-ministro em meio à investigação de corrupção. Ele não foi acusado de nenhum crime.
Além disso, um tribunal de Lisboa decidiu recentemente que um antigo primeiro-ministro socialista deveria ser julgado por corrupção. Os procuradores acusam José Sócrates, primeiro-ministro entre 2005 e 2011, de embolsar cerca de 34 milhões de euros (37 milhões de dólares) através de corrupção, fraude e branqueamento de capitais durante o seu mandato.
O Partido Social Democrata também não está isento de mácula.
Uma recente investigação de corrupção nas Ilhas da Madeira, em Portugal, provocou a demissão de dois proeminentes responsáveis social-democratas. O escândalo eclodiu no mesmo dia em que o partido divulgou um outdoor anticorrupção em Lisboa que dizia: “Não pode continuar assim”.
No entanto, o mal-estar de Portugal é mais profundo do que a corrupção.
Apesar das dezenas de milhares de milhões de euros em ajuda ao desenvolvimento da União Europeia nas últimas décadas, este continua a ser um dos países mais pobres da Europa Ocidental.
Em 2022, o salário médio mensal antes de impostos rondava os 1.400 euros (1.500 dólares) – apenas o suficiente para alugar um apartamento de um quarto em Lisboa, uma vez que os preços dispararam no meio de uma crise imobiliária.
Perto de 3 milhões de trabalhadores portugueses ganham menos de 1.000 euros (1.085 dólares) por mês. A pensão média de velhice é de cerca de 500 euros (543 dólares) por mês. As dificuldades aumentaram devido ao aumento da inflação.
As frustrações tornaram-se mais evidentes porque as eleições coincidem aproximadamente com o 50º aniversário, no próximo mês, da Revolução dos Cravos. Esse golpe militar acabou com a ditadura de direita de António Salazar, que manteve o país acorrentado durante quatro décadas, e introduziu um sistema democrático de governo.
O evento marcante é um poderoso símbolo de esperança em Portugal. Na opinião de muitas pessoas de tendência esquerdista, os seus elevados ideais foram substituídos por interesses políticos sujos.
“Estou um pouco desiludido, claro. Acho que estamos todos a passar por um período de desilusão… Acreditámos em alguma coisa”, disse Osvaldo Sousa, cantor de ópera do Teatro São Carlos, em Lisboa, que aos 20 anos estudante testemunhou tanques e tropas nas ruas em 25 de abril de 1974.
“Os nossos sonhos foram insuficientes”, disse ele no seu apartamento nos subúrbios da capital, apontando para as actuais dificuldades com habitação e cuidados de saúde pública.
Ainda mais frustrante para pessoas como Sousa é que um partido de direita radical possa agora ter acesso ao poder através das urnas.
O partido Chega pode acabar no papel de fazedor de reis se, como esperado, os principais partidos precisarem do apoio de rivais mais pequenos para formar um governo.
Com apenas cinco anos de existência, o Chega conquistou o seu primeiro assento no Parlamento português, com 230 assentos, em 2019. Esse número saltou para 12 assentos em 2022, e as sondagens sugerem que desta vez poderá mais do que duplicar esse número.
O líder do partido, André Ventura, está a aproveitar o desencanto público. “Durante 50 anos os portugueses votaram nos mesmos partidos e nada mudou”, disse recentemente.
Ventura estabeleceu relações amistosas com Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro italiano e chefe do populista partido de direita Liga, e com a líder francesa de extrema-direita, Marine Le Pen. Tal como eles, prefere que a UE seja um agrupamento de Estados soberanos sem obrigações federais. Ele também quer controles mais rígidos sobre a imigração.
Ventura indicou que está preparado para abandonar algumas das propostas mais controversas do Chega, como a castração química para alguns criminosos sexuais, se isso abrir a porta a uma aliança governamental com outros partidos de centro-direita.
Ele fez uso das mídias sociais para alcançar os eleitores mais jovens. Uma delas é Carolina Pereira, de 21 anos, que disse que teve que abandonar a universidade porque não tinha condições de continuar.
Agora ela não consegue encontrar emprego porque o trabalho disponível é mal remunerado e os jovens da sua cidade de Almada, perto de Lisboa, procuram trabalho no estrangeiro.
“Eu me identifico (com Ventura) porque quero que as coisas mudem”, disse ela.
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A videojornalista da AP Helena Alves contribuiu para esta reportagem.
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